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Obra de Lupicínio Rodrigues antecipa onda da "sofrência"


- Foto: agenciabrasil.ebc.com.br

Muito antes da atual onda de "sofrĂȘncia", o cancioneiro brasileiro era povoado por mĂșsicas de "dor de cotovelo". Este era o nome que se dava à aflição sentimental do amor não correspondido ou não bem terminado. A expressão teria origem na imagem de alguĂ©m tristonho, com os cotovelos apoiados na mesa ou no balcão de um bar lamentando a falta de sorte do coração. Atire a primeira pedra quem nunca sofreu por amor e curtiu a fossa ouvindo uma canção de dor de cotovelo.

Em um vasto repertório de canções para sentir e sofrer, destaca-se a obra do compositor, cantor e cronista gaĂșcho LupicĂ­nio Rodrigues. Hoje, 16 de setembro, comemoram-se os 110 anos de nascimento de Lupe, como Ă© tratado em Porto Alegre. LupicĂ­nio Rodrigues foi um fenômeno: o Ășnico artista que não morava no Rio de Janeiro, nem em São Paulo, e fazia sucesso nacional desde a dĂ©cada de 1930.

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Recentemente, as histórias de Lupe ganharam um novo livro, escrito pelo tambĂ©m compositor e pesquisador musical Arthur de Faria. O nome do livro, que se originou do doutorado de Arthur de Faria em literatura brasileira, Ă© LupicĂ­nio: Uma Biografia Musical, publicado pela editora ArquipĂ©lago.

A seguir os principais trechos da entrevista do autor à AgĂȘncia Brasil:

AgĂȘncia Brasil " O seu livro conta que LupicĂ­nio Rodrigues não sabia tocar nenhum instrumento musical. Mas, a despeito disso, alĂ©m das letras, compunha melodias com algum grau de sofisticação. Como isso era possĂ­vel?

Arthur de Faria " Não dĂĄ para ter certeza, mas eu acho que ele partia do texto, ou ia fazendo as duas coisas juntas, cantarolando mesmo na cabeça dele. O Ășnico instrumento que o LupicĂ­nio tocava era a caixinha de fósforos. Ele compunha muito em bares, na rua, raramente em casa. Ia sempre encontrar algum parceiro que tocasse algum instrumento harmônico [como violão e piano]. Esse parceiro criava o acompanhamento, tocando os acordes que seriam os acordes daquela mĂșsica.
A grande maioria das mĂșsicas do LupicĂ­nio Ă© formada por melodias que passeiam muito do grave para o agudo. São melodias de muitas notas e largas extensões. HĂĄ muitas canções dele que começam com um universo de poucas notas, mas, na segunda parte, mais dramĂĄtica, hĂĄ saltos melódicos gigantescos. Isso tudo Ă© instinto do LupicĂ­nio.
Quando vocĂȘ faz uma pergunta, a melodia da voz sobe. Então, se eu te perguntar: "vocĂȘ sabe o que Ă© ter um amor, meu senhor?", a melodia sobe. O que define que isso Ă© uma pergunta, Ă© a melodia da fala. Se eu estiver afirmando: como "ter loucura por uma mulher", a melodia desce. A canção do LupicĂ­nio sempre acerta nisso.

AgĂȘncia Brasil " Mas como ele aprendeu a fazer isso? Como despertou o interesse pela canção?

Arthur de Faria " O LupicĂ­nio nasce em 1914. A Porto Alegre dos anos 1910 e 1920 era um cenĂĄrio muito efervescente. Era um porto importante aqui do Sul. Era um ponto de trajeto entre grandes companhias europeias que iam do Rio de Janeiro para Buenos Aires e MontevidĂ©u e paravam em Porto Alegre. Havia ópera, concerto, teatro e teatro musicado. Tinha muita produção musical em Porto Alegre, valsa, polca, scottish, que jĂĄ se chamava xote, habanera, que logo ia se chamar vanera. Tinha uma onda de grupos com formato de jazz, que tocavam foxtrote, tocavam one-step, two-step, charleston, essas coisas.

AgĂȘncia Brasil " Por falar em Porto Alegre, a cidade Ă© a segunda personagem mais importante do seu livro, depois de LupicĂ­nio. Ainda existem lugares na cidade que ele conheceu e frequentou?

Arthur de Faria " Muito poucos. Nenhuma das casas noturnas daquela Ă©poca existe ainda hoje. O espĂ­rito boĂȘmio, transposto para realidade atual, persiste mais fortemente, no bairro da Cidade Baixa, que era o bairro central da boĂȘmia.

AgĂȘncia Brasil " ?? comum aos poetas e aos letristas criarem um personagem, ou atĂ© personagens no plural, para expressar sentimentos e convicções que não necessariamente sejam seus, o chamado "eu lĂ­rico". No livro, vocĂȘ identifica, em diferentes canções, situações que foram passagens da vida do LupicĂ­nio, em especial seus envolvimentos amorosos. Ele compunha a partir do que tinha vivido de fato. Podemos dizer que LupicĂ­nio Rodrigues era um letrista sem o eu lĂ­rico?

Arthur de Faria " Na verdade, ele fez jogo de cena. LupicĂ­nio falava que tudo que compôs foram coisas que aconteceram com ele. Mentira! Havia nas mĂșsicas coisas que aconteceram com ele ou que ele ouviu de amigos, coisas que se passaram com amigos e conhecidos, e que ele puxou a história para ele. Mas essas pessoas tinham um eu lĂ­rico muito semelhante ao dele. Era o mundo da boemia porto-alegrense, um universo parecido. As alegrias e as patologias similares " eram muito machistas " e tinham uma convivĂȘncia que, para os padrões da Ă©poca, era muitĂ­ssimo democrĂĄtica. Eram homens de qualquer classe social, com formação diferente. Podiam ser brancos ou pretos, hetero ou gays, que não escondiam que eram gays.

AgĂȘncia Brasil " Mas o livro conta que mĂșsicas como "Ela disse-me assim" foram experiĂȘncias próprias...

Arthur de Faria " O LupicĂ­nio tinha muito esse gozo do sofrimento amoroso. Ele adorava. Tem um depoimento incrĂ­vel, que estĂĄ no livro, de um amigo contando que estava caminhando com LupicĂ­nio na rua e aĂ­ ele diz: "vou ali na casa da fulana", que era uma das namoradas que ele tinha. LupicĂ­nio demora e o amigo vai espiar pela janela. Ele vĂȘ LupicĂ­nio de joelhos na frente da namorada, e ela com um revólver dentro da boca dele. O amigo conta que LupicĂ­nio estava com uma expressão beatificada, e não de medo.

AgĂȘncia Brasil " No livro vocĂȘ tambĂ©m conta que LupicĂ­nio Rodrigues conheceu o compositor Noel Rosa e os cantores MĂĄrio Reis e Francisco Alves em Porto Alegre. Que importância tiveram esses nomes para o compositor gaĂșcho?

Arthur de Faria " LupicĂ­nio jĂĄ admirava muito o MĂĄrio Reis. Ainda garoto, ele chegou a ser crooner, cantor de conjuntos, e era chamado de MĂĄrio Reis, porque achavam que ele cantava igual ao MĂĄrio Reis. Assim como João Gilberto, LupicĂ­nio tinha essa referĂȘncia clara como cantor.
Noel Rosa era então reconhecido como o maior compositor do Brasil, e o LupicĂ­nio queria mais do que tudo ser compositor e era um grande fã do Noel " como seria qualquer pessoa que quisesse ser compositor. HĂĄ a história de que Noel, então com 22 anos, após ouvir algumas canções de LupicĂ­nio, então com 17 anos, teria dito: "esse menino Ă© muito bom." Eu não posso provar que isso de fato aconteceu.

AgĂȘncia Brasil " Uma coisa mais fĂĄcil de provar Ă© a importância que Francisco Alves teve para LupicĂ­nio ser um nome nacional, não?

Arthur de Faria " Exatamente. Algum tempo depois da gravação com sucesso de Se Acaso VocĂȘ Chegasse, por Ciro Monteiro, em 1937], LupicĂ­nio vai ao Rio de Janeiro, mostrar outras mĂșsicas dele pra algumas pessoas. Ele mostra vĂĄrias canções para o Francisco Alves, que diz para ele guardar tudo e promete gravar, mas não grava.
Em 1945, o Orlando Silva, que era o segundo cantor mais importante do Brasil, grava uma das mĂșsicas que o LupicĂ­nio tinha mostrado para Francisco Alves. Não sei se tomar uma bolada nas costas do Orlando Silva, ou se porque percebeu o crescimento do bolero e do samba-canção, Francisco começa finalmente a gravar as mĂșsicas que o LupicĂ­nio tinha dado para ele. AĂ­ Ă© sucesso depois de sucesso.

AgĂȘncia Brasil " Falamos de Se Acaso VocĂȘ Chegasse, que Ă© uma mĂșsica que lança o Ciro Monteiro e duas dĂ©cadas depois leva Elza Soares ao sucesso. Que diferenças tĂȘm essas versões? HĂĄ outro caso na mĂșsica brasileira de uma mesma mĂșsica servir de lançamento para dois artistas tão distantes, tão diferentes?

Arthur de Faria " Não me ocorre nenhuma outra mĂșsica, nenhum outro caso, ainda mais com intervalo de tempo tão grande. A mĂșsica brasileira estava em outro universo. Elza fez um negócio que, na Ă©poca, causou polĂȘmica. Ela jĂĄ era, sem saber, superfeminista. Ela não canta os versos "de dia, me lava a roupa; de noite e me beija a boca". Certa vez, Elza explicou: "eu lavei muita roupa de madame e eu não vou cantar um negócio desse."
Agora a outra boa dela Ă© quando grava Vingança, em meados dos anos 1960. As pessoas acharam que ela estava debochando da mĂșsica. Em uma entrevista, eu perguntei para ela se estava debochando naquela gravação. Ela respondeu: "bicho, não dĂĄ para cantar aquilo a sĂ©rio, nĂ©? Claro que eu estava tirando uma onda desse dramalhão." Meu palpite Ă© que o próprio LupicĂ­nio tambĂ©m tirava um pouco de onda.

*O tĂ­tulo da matĂ©ria foi alterado às 14h54

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