Essas tragĂ©dias, que juntas geraram mais de 500 mortes e deixaram centenas de feridos e desabrigados, são decorrentes da exploração de atividades econômicas privadas e, atĂ© o momento, não resultaram em nenhuma responsabilização na esfera criminal. O assunto foi discutido no 190Âș PerĂodo de Sessões, que teve inĂcio no dia 8 de julho e se encerra na próxima sexta-feira (19).
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"Solicitamos que a comissão inste o Estado brasileiro a restaurar ou reabrir processos penais ou administrativos, estabelecer um efetivo controle social sobre a atividade do MinistĂ©rio PĂșblico e dos órgãos de fiscalização e anĂĄlise de riscos e conceber uma legislação especĂfica para casos de tragĂ©dias coletivas e de grande impacto social prevendo mecanismos de prevenção e responsabilização", disse, na audiĂȘncia, a advogada Tâmara Biolo Soares, representante da defesa das vĂtimas.
Seu discurso foi o primeiro a ser proferido e apresentou as principais reivindicações na esfera penal. Ela tambĂ©m estranhou a falta de denĂșncias contra agentes pĂșblicos. Segundo ela, alĂ©m das responsabilidades de empresĂĄrios, hĂĄ flagrantes responsabilidades do Estado.
"A Boate Kiss [no Rio Grande do Sul] foi multada pela prefeitura de Santa Maria por trĂȘs vezes por irregularidades e nunca apresentou todos os alvarĂĄs que necessitava para funcionar. Mas nunca foi impedida de funcionar. O Flamengo foi multado 31 vezes pela prefeitura do Rio de Janeiro por irregularidades. Mas seu centro de treinamentos apenas foi fechado um dia após a tragĂ©dia. A AgĂȘncia Nacional de Mineração e as secretarias de Meio Ambiente de Minas Gerais e de Alagoas tinham pleno conhecimento dos riscos indevidos das barragens em Mariana e Brumadinho e da extração de sal-gema em Maceió. Mesmo assim permitiram a continuidade das operações", afirmou Tâmara.
A advogada tambĂ©m fez crĂticas ao sistema penal brasileiro. "Em nenhum desses cinco casos, hĂĄ qualquer autoridade pĂșblica respondendo judicialmente por sua ação. Não porque não exista responsabilidade, e sim porque foram excluĂdas do escrutĂnio judicial. O problema Ă© que, quando o MinistĂ©rio PĂșblico decide não processar, ninguĂ©m mais no Brasil tem legitimidade ativa para interpor ações contra essas autoridades pĂșblicas. O que nós temos Ă© uma lacuna gravĂssima no acesso à Justiça que precisa ser reformada, ampliando o papel das vĂtimas no processo penal brasileiro", avaliou.
Em diversos pronunciamentos, as vĂtimas criticaram a limitação dos processos reparatórios, que seriam responsĂĄveis por gerar sofrimento emocional e adoecimento, e avaliaram que a situação das ações penais gera um cenĂĄrio de impunidade. Houve reclamações relacionadas com trancamentos, com arquivamentos, com concessões de habeas corpus e com o excesso de paralisações por questões processuais que atrasam ou impedem que o mĂ©rito dos casos seja julgado.
Condenação
Com base na audiĂȘncia, a comissão pode emitir recomendações aos estados e, persistindo a situação, pode tambĂ©m levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que realiza julgamentos à luz dos tratados internacionais. As decisões são de cumprimento obrigatório, tendo em vista que o Brasil reconheceu em 1998 a competĂȘncia contenciosa do tribunal.
Um exemplo Ă© a condenação imposta ao Estado brasileiro em 2018 devido à falta de garantia de justiça envolvendo chacinas ocorridas durante ações policiais na comunidade Nova BrasĂlia, na zona norte do Rio de Janeiro, em 1994 e 1995. Os episódios deixaram 26 mortos. Conforme a sentença, o paĂs foi obrigado a reabrir as investigações e a indenizar 80 pessoas, entre familiares de mortos e sobreviventes que foram torturados.
O caso se tornou emblemĂĄtico por ter sido a primeira condenação do paĂs no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No entanto, apesar do processo criminal ter sido reaberto, ninguĂ©m foi condenado.
Impunidade
Na audiĂȘncia, as vĂtimas fizeram uma breve exposição sobre os impactos e sobre a situação dos processos penais de cada caso. Após nove anos do incĂȘndio da Boate Kiss, que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos em Santa Maria (RS), em 2013, houve finalmente a condenação de quatro pessoas por um tribunal de jĂșri. Elas chegaram a ser sentenciadas a 18 anos de prisão. No entanto, seis meses depois, a decisão foi anulada atendendo pedidos dos advogados dos acusados, que apontaram nulidades no processo. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) avalia um recurso do MinistĂ©rio PĂșblico Federal (MPF), que pede que as sentenças sejam restabelecidas.
"Esses jovens, muitos deles heróis que tentaram salvar amigos e deram suas vidas por outras, não merecem esse desprezo da Justiça", disse Paulo Carvalho, que perdeu seu filho Rafael Carvalho. Atualmente ele Ă© diretor jurĂdico da Associação dos Familiares de VĂtimas e Sobreviventes da TragĂ©dia de Santa Maria (AVTSM).
Paulo lembra que a PolĂcia Civil chegou a indiciar autoridades pĂșblicas, inclusive um promotor do MinistĂ©rio PĂșblico do Rio Grande do Sul (MPRS) por omissão. No entanto, o MinistĂ©rio PĂșblico não ofereceu denĂșncia contra essas pessoas. Paulo tambĂ©m relatou que pais de vĂtimas foram processados após criticarem a conduta dos promotores que participaram do caso.
Na tragĂ©dia de Minas Gerais - ocorrida em 2015 - uma barragem da mineradora Samarco, situada na zona rural de Mariana, se rompeu causando 19 mortes e gerando impactos socioambientais em dezenas de municĂpios mineiros e capixabas na Bacia do Rio Doce. A maioria dos denunciados obteve decisões favorĂĄveis que lhe retiraram a condição de rĂ©us e os poucos que ainda figuram no processo criminal após oito anos não respondem mais por homicĂdio.
"Não hĂĄ participação efetiva dos atingidos em nenhum processo da reparação. ?? possĂvel dizer que o Estado não respeita nossa dor", criticou Mônica dos Santos, integrante da comissão dos atingidos do distrito de Bento Rodrigues, uma das comunidades destruĂda no episódio. Segundo ela, as condições de vida das famĂlias não tĂȘm sido levadas em conta. Mônica relatou que não hĂĄ espaço nem disponibilidade de ĂĄgua na nova comunidade construĂda para reassentar as vĂtimas, o que inviabiliza a criação de animais e o cultivo de hortas.
Indignação
O rompimento de outra barragem em 2019, na cidade de Brumadinho (MG), causou a perda de 272 vidas. Tendo em vista que a maioria das vĂtimas trabalhava na mina onde ocorreu o colapso, o episódio se tornou o maior acidente trabalhista do paĂs.
A estrutura era da Vale, mineradora que tambĂ©m estava envolvida na tragĂ©dia de 2015. Ela Ă© uma das duas acionistas da Samarco, ao lado da angloaustraliana BHP Billiton. As famĂlias dos atingidos vĂȘm manifestando indignação contra o habeas corpus recentemente concedido ao ex-presidente da Vale, FĂĄbio Schvartsman, que o livrou de processo criminal.
Maria Regina da Silva, mãe de Priscila da Silva que tinha 29 anos e era funcionĂĄria da Vale, avaliou que os tribunais não permitem que o processo criminal avance. No caso da tragĂ©dia em Brumadinho, o caso chegou a ser federalizado após mais de dois anos tramitando no nĂvel estadual.
Com a transferĂȘncia de competĂȘncia, o julgamento praticamente voltou à estaca zero. Maria Regina cobrou justiça pelos entes queridos. "Enterramos apenas partes de corpos. Foram todos moĂdos junto com o minĂ©rio. A maioria encontrada sem cabeça", afirmou.
JĂĄ o afundamento de cinco bairros em Maceió deve-se à exploração de minas de sal-gema pela petroquĂmica Braskem. Estima-se que cerca de 60 mil moradores tiveram que se mudar do local e deixar os seus imóveis. Considerando o abandono de hospitais, escolas e comĂ©rcios, as vĂtimas tambĂ©m falam em milhares de desempregados.
Alegam, ainda, que 19 pessoas cometeram suicĂdios por causa da perda de suas condições de vida. Ainda não houve sequer denĂșncia criminal e o inquĂ©rito policial corre em sigilo, o que impede o acompanhamento das vĂtimas.
No caso do incĂȘndio ocorrido em fevereiro de 2019 nas instalações do Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro, dez garotos entre 14 e 16 anos morreram. Eles integravam as categorias de base do clube. AtĂ© o momento, tambĂ©m não houve responsabilização criminal. Somente cinco anos após o episódio houve a primeira audiĂȘncia de primeira instância.
"Entregamos a guarda dos nossos filhos ao Flamengo com a promessa de formação de grandes atletas. E nos devolveram nossas crianças em caixões lacrados", lamentou Darlei Pisetta, pai de Bernardo Pisetta, que tinha 14 anos.
"Não sabĂamos que o centro de treinamento jĂĄ havia tido diversas autuações. O Flamengo e os órgãos pĂșblicos tiveram inĂșmeras chances de se adequar. Morar no paĂs do futebol deixou de ser uma esperança para nossos jovens e se tornou a certeza da impunidade para o Flamengo", acrescentou Darlei.
Respostas do Estado
Após o depoimento das vĂtimas, foi dada a palavra a representantes do Estado brasileiro. TambĂ©m houve perguntas de integrantes de CIDH, entres eles o uruguaio Javier Palummo que responde pela Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca).
Representando o Estado brasileiro, Luiz Gustavo Lo-Buono, coordenador-geral de Direitos Humanos e Empresas do MinistĂ©rio dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), elencou ações que estão sendo realizadas para a proteção de direitos humanos em atividades comerciais, em linha com as discussões que ocorrem no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Ele mencionou que a ONU estabeleceu princĂpios sobre direitos humanos e empresas em 2011 e aprovou uma resolução em 2014 que iniciou a elaboração de um tratado internacional sobre o tema.
Lo-Buono afirmou, ainda, que o MDHC editou a Portaria 123/2024 que regulamenta audiĂȘncias pĂșblicas focada nos direitos de atingidos. TambĂ©m destacou que atualmente tramita no Congresso Nacional, em BrasĂlia, o Projeto de Lei 572/2022, que busca criar o Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas.
TambĂ©m falaram pelo Estado brasileiro representantes de órgãos ambientais. Eles disseram que os danos causados aos atingidos foram reconhecidos pelo Estado. Foram apresentados dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenovĂĄveis (Ibama), segundo os quais foram impostas sanções à Vale e cinco multas pela tragĂ©dia ocorrida em Brumadinho. A mineradora, no entanto, vinha contestando essas cobranças. Não foi informado se elas jĂĄ foram quitadas.
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