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Vítimas de tragédias esperam cobranças ao Brasil após audiência na OEA


- Foto: agenciabrasil.ebc.com.br

O pedido para que o Brasil seja cobrado a apresentar respostas no âmbito judicial e legislativo deu o tom das intervenções das vĂ­timas de tragĂ©dias que participaram da audiĂȘncia realizada na sexta-feira (12) pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA). Na ocasião, estiveram em pauta cinco episódios: os rompimentos das barragens em Mariana (MG) e em Brumadinho (MG), os incĂȘndios da Boate Kiss e o Ninho do Urubu e o afundamento de bairros em Maceió.

Essas tragĂ©dias, que juntas geraram mais de 500 mortes e deixaram centenas de feridos e desabrigados, são decorrentes da exploração de atividades econômicas privadas e, atĂ© o momento, não resultaram em nenhuma responsabilização na esfera criminal. O assunto foi discutido no 190Âș PerĂ­odo de Sessões, que teve inĂ­cio no dia 8 de julho e se encerra na próxima sexta-feira (19).

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Nessa fase, a CIDH realiza ao todo 34 audiĂȘncias pĂșblicas. O propósito Ă© receber informações sobre a situação de direitos humanos com relação a temĂĄticas variadas que afetam paĂ­ses especĂ­ficos ou todo o continente.

"Solicitamos que a comissão inste o Estado brasileiro a restaurar ou reabrir processos penais ou administrativos, estabelecer um efetivo controle social sobre a atividade do MinistĂ©rio PĂșblico e dos órgãos de fiscalização e anĂĄlise de riscos e conceber uma legislação especĂ­fica para casos de tragĂ©dias coletivas e de grande impacto social prevendo mecanismos de prevenção e responsabilização", disse, na audiĂȘncia, a advogada Tâmara Biolo Soares, representante da defesa das vĂ­timas.

Seu discurso foi o primeiro a ser proferido e apresentou as principais reivindicações na esfera penal. Ela tambĂ©m estranhou a falta de denĂșncias contra agentes pĂșblicos. Segundo ela, alĂ©m das responsabilidades de empresĂĄrios, hĂĄ flagrantes responsabilidades do Estado.

"A Boate Kiss [no Rio Grande do Sul] foi multada pela prefeitura de Santa Maria por trĂȘs vezes por irregularidades e nunca apresentou todos os alvarĂĄs que necessitava para funcionar. Mas nunca foi impedida de funcionar. O Flamengo foi multado 31 vezes pela prefeitura do Rio de Janeiro por irregularidades. Mas seu centro de treinamentos apenas foi fechado um dia após a tragĂ©dia. A AgĂȘncia Nacional de Mineração e as secretarias de Meio Ambiente de Minas Gerais e de Alagoas tinham pleno conhecimento dos riscos indevidos das barragens em Mariana e Brumadinho e da extração de sal-gema em Maceió. Mesmo assim permitiram a continuidade das operações", afirmou Tâmara.

A advogada tambĂ©m fez crĂ­ticas ao sistema penal brasileiro. "Em nenhum desses cinco casos, hĂĄ qualquer autoridade pĂșblica respondendo judicialmente por sua ação. Não porque não exista responsabilidade, e sim porque foram excluĂ­das do escrutĂ­nio judicial. O problema Ă© que, quando o MinistĂ©rio PĂșblico decide não processar, ninguĂ©m mais no Brasil tem legitimidade ativa para interpor ações contra essas autoridades pĂșblicas. O que nós temos Ă© uma lacuna gravĂ­ssima no acesso à Justiça que precisa ser reformada, ampliando o papel das vĂ­timas no processo penal brasileiro", avaliou.

Em diversos pronunciamentos, as vĂ­timas criticaram a limitação dos processos reparatórios, que seriam responsĂĄveis por gerar sofrimento emocional e adoecimento, e avaliaram que a situação das ações penais gera um cenĂĄrio de impunidade. Houve reclamações relacionadas com trancamentos, com arquivamentos, com concessões de habeas corpus e com o excesso de paralisações por questões processuais que atrasam ou impedem que o mĂ©rito dos casos seja julgado.

Condenação

Com base na audiĂȘncia, a comissão pode emitir recomendações aos estados e, persistindo a situação, pode tambĂ©m levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que realiza julgamentos à luz dos tratados internacionais. As decisões são de cumprimento obrigatório, tendo em vista que o Brasil reconheceu em 1998 a competĂȘncia contenciosa do tribunal.

Um exemplo Ă© a condenação imposta ao Estado brasileiro em 2018 devido à falta de garantia de justiça envolvendo chacinas ocorridas durante ações policiais na comunidade Nova BrasĂ­lia, na zona norte do Rio de Janeiro, em 1994 e 1995. Os episódios deixaram 26 mortos. Conforme a sentença, o paĂ­s foi obrigado a reabrir as investigações e a indenizar 80 pessoas, entre familiares de mortos e sobreviventes que foram torturados.

O caso se tornou emblemĂĄtico por ter sido a primeira condenação do paĂ­s no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No entanto, apesar do processo criminal ter sido reaberto, ninguĂ©m foi condenado.

Impunidade

Na audiĂȘncia, as vĂ­timas fizeram uma breve exposição sobre os impactos e sobre a situação dos processos penais de cada caso. Após nove anos do incĂȘndio da Boate Kiss, que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos em Santa Maria (RS), em 2013, houve finalmente a condenação de quatro pessoas por um tribunal de jĂșri. Elas chegaram a ser sentenciadas a 18 anos de prisão. No entanto, seis meses depois, a decisão foi anulada atendendo pedidos dos advogados dos acusados, que apontaram nulidades no processo. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) avalia um recurso do MinistĂ©rio PĂșblico Federal (MPF), que pede que as sentenças sejam restabelecidas.

Mortes na Boate Kiss são lembradas por parentes e amigos das vĂ­timas - foto - Tomaz Silva/AgĂȘncia Brasil

"Esses jovens, muitos deles heróis que tentaram salvar amigos e deram suas vidas por outras, não merecem esse desprezo da Justiça", disse Paulo Carvalho, que perdeu seu filho Rafael Carvalho. Atualmente ele Ă© diretor jurĂ­dico da Associação dos Familiares de VĂ­timas e Sobreviventes da TragĂ©dia de Santa Maria (AVTSM).

Paulo lembra que a PolĂ­cia Civil chegou a indiciar autoridades pĂșblicas, inclusive um promotor do MinistĂ©rio PĂșblico do Rio Grande do Sul (MPRS) por omissão. No entanto, o MinistĂ©rio PĂșblico não ofereceu denĂșncia contra essas pessoas. Paulo tambĂ©m relatou que pais de vĂ­timas foram processados após criticarem a conduta dos promotores que participaram do caso.

Na tragĂ©dia de Minas Gerais - ocorrida em 2015 - uma barragem da mineradora Samarco, situada na zona rural de Mariana, se rompeu causando 19 mortes e gerando impactos socioambientais em dezenas de municĂ­pios mineiros e capixabas na Bacia do Rio Doce. A maioria dos denunciados obteve decisões favorĂĄveis que lhe retiraram a condição de rĂ©us e os poucos que ainda figuram no processo criminal após oito anos não respondem mais por homicĂ­dio.

"Não hĂĄ participação efetiva dos atingidos em nenhum processo da reparação. ?? possĂ­vel dizer que o Estado não respeita nossa dor", criticou Mônica dos Santos, integrante da comissão dos atingidos do distrito de Bento Rodrigues, uma das comunidades destruĂ­da no episódio. Segundo ela, as condições de vida das famĂ­lias não tĂȘm sido levadas em conta. Mônica relatou que não hĂĄ espaço nem disponibilidade de ĂĄgua na nova comunidade construĂ­da para reassentar as vĂ­timas, o que inviabiliza a criação de animais e o cultivo de hortas.

Indignação

O rompimento de outra barragem em 2019, na cidade de Brumadinho (MG), causou a perda de 272 vidas. Tendo em vista que a maioria das vĂ­timas trabalhava na mina onde ocorreu o colapso, o episódio se tornou o maior acidente trabalhista do paĂ­s.

A estrutura era da Vale, mineradora que tambĂ©m estava envolvida na tragĂ©dia de 2015. Ela Ă© uma das duas acionistas da Samarco, ao lado da angloaustraliana BHP Billiton. As famĂ­lias dos atingidos vĂȘm manifestando indignação contra o habeas corpus recentemente concedido ao ex-presidente da Vale, FĂĄbio Schvartsman, que o livrou de processo criminal.

Maria Regina da Silva, mãe de Priscila da Silva que tinha 29 anos e era funcionĂĄria da Vale, avaliou que os tribunais não permitem que o processo criminal avance. No caso da tragĂ©dia em Brumadinho, o caso chegou a ser federalizado após mais de dois anos tramitando no nĂ­vel estadual.

Com a transferĂȘncia de competĂȘncia, o julgamento praticamente voltou à estaca zero. Maria Regina cobrou justiça pelos entes queridos. "Enterramos apenas partes de corpos. Foram todos moĂ­dos junto com o minĂ©rio. A maioria encontrada sem cabeça", afirmou.

JĂĄ o afundamento de cinco bairros em Maceió deve-se à exploração de minas de sal-gema pela petroquĂ­mica Braskem. Estima-se que cerca de 60 mil moradores tiveram que se mudar do local e deixar os seus imóveis. Considerando o abandono de hospitais, escolas e comĂ©rcios, as vĂ­timas tambĂ©m falam em milhares de desempregados.

Alegam, ainda, que 19 pessoas cometeram suicĂ­dios por causa da perda de suas condições de vida. Ainda não houve sequer denĂșncia criminal e o inquĂ©rito policial corre em sigilo, o que impede o acompanhamento das vĂ­timas.

No caso do incĂȘndio ocorrido em fevereiro de 2019 nas instalações do Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro, dez garotos entre 14 e 16 anos morreram. Eles integravam as categorias de base do clube. AtĂ© o momento, tambĂ©m não houve responsabilização criminal. Somente cinco anos após o episódio houve a primeira audiĂȘncia de primeira instância.

Dor e lĂĄgrimas marcaram sepultamento de vĂ­timas da tragĂ©dia do Ninho do Urubu, no Rio de Janeiro - Tânia RĂȘgo/AgĂȘncia Brasil

"Entregamos a guarda dos nossos filhos ao Flamengo com a promessa de formação de grandes atletas. E nos devolveram nossas crianças em caixões lacrados", lamentou Darlei Pisetta, pai de Bernardo Pisetta, que tinha 14 anos.

"Não sabĂ­amos que o centro de treinamento jĂĄ havia tido diversas autuações. O Flamengo e os órgãos pĂșblicos tiveram inĂșmeras chances de se adequar. Morar no paĂ­s do futebol deixou de ser uma esperança para nossos jovens e se tornou a certeza da impunidade para o Flamengo", acrescentou Darlei.

Respostas do Estado

Após o depoimento das vĂ­timas, foi dada a palavra a representantes do Estado brasileiro. TambĂ©m houve perguntas de integrantes de CIDH, entres eles o uruguaio Javier Palummo que responde pela Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca).

Representando o Estado brasileiro, Luiz Gustavo Lo-Buono, coordenador-geral de Direitos Humanos e Empresas do MinistĂ©rio dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), elencou ações que estão sendo realizadas para a proteção de direitos humanos em atividades comerciais, em linha com as discussões que ocorrem no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Ele mencionou que a ONU estabeleceu princĂ­pios sobre direitos humanos e empresas em 2011 e aprovou uma resolução em 2014 que iniciou a elaboração de um tratado internacional sobre o tema.

Lo-Buono afirmou, ainda, que o MDHC editou a Portaria 123/2024 que regulamenta audiĂȘncias pĂșblicas focada nos direitos de atingidos. TambĂ©m destacou que atualmente tramita no Congresso Nacional, em BrasĂ­lia, o Projeto de Lei 572/2022, que busca criar o Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas.

TambĂ©m falaram pelo Estado brasileiro representantes de órgãos ambientais. Eles disseram que os danos causados aos atingidos foram reconhecidos pelo Estado. Foram apresentados dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenovĂĄveis (Ibama), segundo os quais foram impostas sanções à Vale e cinco multas pela tragĂ©dia ocorrida em Brumadinho. A mineradora, no entanto, vinha contestando essas cobranças. Não foi informado se elas jĂĄ foram quitadas.

agenciabrasil.ebc.com.br

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