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PGR irá avaliar federalização de casos de letalidade policial no RJ


- Foto: agenciabrasil.ebc.com.br

O MinistĂ©rio PĂșblico Federal (MPF) estuda pedir a federalização de quatro casos envolvendo letalidade policial no Rio de Janeiro. Um deles envolve a chamada Chacina do Jacarezinho, ocorrida em 2021 durante operação policial que deixou 28 mortos Ă© considerada mais letal da histórica da capital fluminense. A discussão ocorre tendo em vista indĂ­cios de violações de direitos humanos em processos que tramitam na esfera estadual.

A palavra final cabe ao procurador-geral da RepĂșblica, Paulo Gonet. Um eventual pedido de federalização dos casos precisa ser encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

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Não hĂĄ um prazo para que Gonet tome sua decisão. Ele deverĂĄ avaliar a questão com base em uma representação protocolada nesta quarta-feira (10) pelo procurador Eduardo Benones, coordenador do NĂșcleo de Controle Externo da Atividade Policial do MPF no Rio de Janeiro, que se manifesta favoravelmente a um pedido de deslocamento da competĂȘncia da esfera estadual para a esfera federal.

Caso ocorra a federalização, hĂĄ impacto tanto para o julgamento como para o processo de investigação e de apresentação da denĂșncia, que deixariam de ser feitas pela PolĂ­cia Civil e pelo MinistĂ©rio PĂșblico do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e passariam para a PolĂ­cia Federal e o MPF.

Rio de Janeiro (RJ), 10/07/2024 - Representação foi protocolada pelo procurador Eduardo Benones Foto: Tânia RĂȘgo/AgĂȘncia Brasil

"Após efetuar diversas anĂĄlises, estamos representando pela federalização. Estamos bastante convencidos pelos documentos trazidos que houve nesses casos graves violações aos direitos humanos", anunciou Benones em reunião na tarde desta quarta-feira (10) com representantes da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela ViolĂȘncia de Estado (Raave), que Ă© constituĂ­da por instituições defensoras de direitos humanos, movimentos de mães e familiares das vĂ­timas e grupos clĂ­nicos de atenção psicossocial. Foram eles que levaram ao MPF a demanda pela federalização dos casos.

"Essa decisão Ă© fundamental para a gente garantir os direitos à verdade, à memória, à justiça e à reparação das famĂ­lias afetadas pela violĂȘncia do Estado e assim conseguir preservar e reparar a saĂșde dessas pessoas que fica muito afetada com o arquivamento indevido, com o processo de criminalização, com os maus-tratos que recebem das autoridades", disse o advogado Guilherme Pimentel, coordenador tĂ©cnico da Raave.

Casos

Um dos casos incluĂ­dos na representação envolve as mortes do filho e do marido de Sônia Bonfim. Eles se deslocavam numa moto quando foram alvos de tiros durante uma operação policial em 25 de setembro de 2021 no Complexo do Chapadão, onde moravam na zona norte do Rio de Janeiro.

Sônia critica a falta de perĂ­cia e busca saber porque o caso não estĂĄ tramitando na Delegacia de HomicĂ­dios e sim na 31ÂȘ Delegacia de PolĂ­cia Civil. Passados quase trĂȘs anos, o inquĂ©rito não foi concluĂ­do.

"Ainda estĂĄ na fase de investigação e sob sigilo", diz Sônia. Ela relata ter sido maltratada nas ocasiões em que foi ao local solicitar informações. "Eu consegui pegar a moto que era do meu esposo. Mas não me entregaram o documento que comprova que a moto Ă© dele. Só me entregaram a moto como uma cala boca. O celular que era do meu filho tambĂ©m sumiu", critica. Ela afirmou estar esperançosa com a federalização. "A gente estĂĄ cansada de injustiças na esfera estadual. Quero que seja realizada uma perĂ­cia independente", cobra.

Conforme a representação, os casos elencados envolvem investigações que registram irregularidades como negligĂȘncia na obtenção de provas, desaparecimento de provas, omissão na escuta de testemunhas fundamentais e arquivamento prematuro de inquĂ©ritos. TambĂ©m são relatadas sĂșbitas desistĂȘncias de algumas testemunhas em prestar depoimento e atĂ© mesmo o homicĂ­dio de outras.

Um desses casos foi incluĂ­do no pedido de federalização: trata-se da morte de um homem durante uma operação policial no Complexo da MarĂ©, na zona norte do Rio de Janeiro, em setembro de 2022. Ele morreu uma semana antes da data agendada para prestar depoimento em um processo que tratava do homicĂ­dio de um jovem de 16 anos, ocorrido em 2005, no qual trĂȘs policiais militares figuravam como rĂ©us. O homem era considerado uma testemunha-chave. Na etapa investigativa, ele havia relatado como foi a abordagem à vĂ­tima, que andava de bicicleta, e afirmou que houve disparos para o alto para simular um falso tiroteio. Conforme a representação, a morte da testemunha não foi elucidada.

Sobre o caso que ficou conhecido como Chacina do Jacarezinho, Benones criticou a ausĂȘncia de uma investigação concentrada. Ele menciona na representação que o desmembramento em 12 inquĂ©ritos fragmentou e prejudicou a apuração dos crimes. Apesar dos indĂ­cios de execuções sumĂĄrias e de arrastamento de corpos, somente um homicĂ­dio gerou acusação formal.

O quarto caso incluĂ­do na representação diz respeito à morte de um mototaxista, atingido na cabeça em 2018 na Cidade de Deus, tambĂ©m na zona norte da capital. Gravações de uma câmera de segurança captaram o momento em que policiais em perseguição a dois homens efetuam disparos de fuzil em ĂĄrea movimentada. Um dos tiros atingiu o mototaxista. "Apesar dos registros e da inequĂ­voca identificação do responsĂĄvel, o inquĂ©rito policial ainda não foi concluĂ­do", escreveu Benones.

Na representação, o procurador tambĂ©m menciona outro fato que não teria tido a devida apuração. Após uma operação policial em novembro de 2021, no Complexo do Salgueiro, no municĂ­pio de São Gonçalo (RJ), entidades que atuam na defesa dos Direitos Humanos flagraram o que apelidaram de "fogueira de provas". Roupas com vestĂ­gios de sangue e perfurações, alĂ©m de outros objetos, haviam sido reunidas e queimadas. As entidades denunciaram a destruição de elementos que poderiam elucidar as mortes de oito pessoas, cujos cadĂĄveres foram retirados de um manguezal, razão pela qual o episódio ficou conhecido como Chacina do Manguezal.

"Talvez esse episódio seja a expressão mais gritante da ausĂȘncia total de cuidados com a perĂ­cia no Rio de Janeiro", diz o advogado da Raave, Guilherme Pimentel. Ele tambĂ©m aponta que a descrença das famĂ­lias com os inquĂ©ritos e os processos em andamento aumentaram com as recentes revelações de que autoridades pĂșblicas estaduais, incluindo um delegado, participaram do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes e tambĂ©m atuaram na obstrução do inquĂ©rito. As descobertas vieram à tona após um deputado federal se tornar investigado, exigindo assim o deslocamento do caso para o Supremo Tribunal Federal (STF) e o envolvimento da PolĂ­cia Federal nas apurações.

"Quando as instituições federais entraram no caso, conseguiram perceber esse envolvimento criminoso e chegaram aos mandantes. Isso traz à tona uma questão na cabeça de todas as famĂ­lias que perderam um parente assassinado por algum agente pĂșblico. As mães ficam se perguntando com razão: "serĂĄ que estão obstruindo as investigações do assassinato do meu filho? SerĂĄ que Ă© isso que tem gerado o arquivamento de tantos assassinatos cometidos por agentes pĂșblicos"?", diz.

Rio de Janeiro (RJ), 26/06/2024 - Familiares das vĂ­tima de violĂȘncia participaram da reunião. Foto: Tânia RĂȘgo/AgĂȘncia Brasil

Adoecimento

Mães que participam da Raave vĂȘm denunciando atos ilĂ­citos e irregularidades que dificultam a solução dos casos, boa parte deles envolvendo alterações na cena do crime: implantação de armas e drogas, remoção de cadĂĄveres, recolhimento de cĂĄpsulas, simulações de tiroteio. TambĂ©m hĂĄ indignação com os registros nos boletins de ocorrĂȘncia. Houve ocorrĂȘncias em que tiros pelas costas aparecem como "auto de resistĂȘncia", quando a vĂ­tima resiste à abordagem policial.

De acordo com Pimentel, os quatro casos incluĂ­dos na representação integram uma primeira leva encaminhada ao MPF para anĂĄlise. Ele lembra que a Raave atua com foco na atenção psicossocial das famĂ­lias e que a atuação jurĂ­dica busca tambĂ©m cumprir um papel importante para a saĂșde dessas pessoas, em meio às angĂșstias e aflições.

"De certa maneira, o profissional do direito começa a se identificar tambĂ©m como um profissional da saĂșde. Toda vez que a Raave se deparar com o sofrimento psicossocial e com adoecimento das famĂ­lias em virtude da estagnação dos seus casos ou um arquivamento indevido, a gente vai trazer ao conhecimento do MinistĂ©rio PĂșblico Federal para a anĂĄlise de uma possĂ­vel federalização".

O coordenador tambĂ©m lembra que, no mesmo dia em que a discussão da federalização dos quatro casos chegou ao gabinete do procurador-geral da RepĂșblica, familiares das vĂ­timas manifestavam sua indignação com mais uma decisão judicial na esfera estadual. Na terça-feira (9), o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) absolveu sumariamente trĂȘs policiais denunciados pela morte do adolescente João Pedro, morto durante na Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), no dia 18 de maio de 2020.

A juĂ­za Juliana Bessa Ferraz Krykhtine considerou que os agentes agiram em legĂ­tima defesa. A sentença foi considerada pela Anistia Internacional como uma mensagem de impunidade diante das provas tĂ©cnicas e testemunhais. João Pedro tinha 14 anos quando levou um tiro nas costas dentro da casa de um tio, durante ação conjunta da PolĂ­cia Federal e da PolĂ­cia Civil do Rio de Janeiro. Os trĂȘs policiais eram rĂ©us por homicĂ­dio e por fraude processual.

TambĂ©m integrante do Raave, Bruna Silva teme o mesmo desdobramento para o caso do seu filho, morto aos 14 anos durante uma operação policial em 2018 no Complexo da MarĂ©. "?? um absurdo dizer que não houve intenção de matar. Se vocĂȘs vissem o estado que eu encontrei o corpo dele no IML [Instituto MĂ©dico Legal]. ?? a mesma coisa o caso do João Pedro. O menino estava dentro de casa na pandemia, que era uma Ă©poca em que vocĂȘ não podia sair na rua. Então o policial invade, atira na criança e retira ela falando que estĂĄ socorrendo. E o menino morre no meio do caminho. E diz que não teve intenção de matar", lamenta.

Segundo Bruna, decisões como a do caso João Pedro afetam a saĂșde mental das famĂ­lias e a falta de responsabilização dos crimes geram adoecimento. Ele lembra que hĂĄ mães que faleceram antes de obter justiça para seus filhos. "Ver o retrocesso dessa decisão Ă© como se a gente estivesse revivendo o nosso luto de novo. Mas não seremos silenciadas. No caso do meu filho, o pedido de federalização jĂĄ foi feito. Mas a testemunha principal do caso foi morta tambĂ©m por um agente pĂșblico. E eu quero reforçar o pedido para que o caso dessa testemunha tambĂ©m seja federalizado. Enquanto tivermos braços, a gente vai se apoiar. Não vamos desanimar porque se tratam de filhos e a gente vai lutar por cada vida", acrescenta.

Requisitos

De acordo com o procurador Benones, os quatros casos incluĂ­dos na representação reĂșnem os dois requisitos para a federalização: hĂĄ indĂ­cios de grave violação aos direitos humanos e hĂĄ possibilidade de que o Estado brasileiro seja responsabilizado internacionalmente. Ele lembra que, em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, instituição judicial vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o paĂ­s por não garantir a justiça no caso das chacinas ocorridas durante ações policiais na comunidade Nova BrasĂ­lia, na zona norte do Rio de Janeiro, em 1994 e 1995. Os episódios deixaram 26 mortos. O Brasil foi obrigado a reabrir as investigações e indenizar 80 pessoas.

"Quando a gente pede a federalização Ă© porque nós jĂĄ esgotamos todas as possibilidades e estão preenchidos todos os requisitos. Isso pode ocorrer para todo tipo de caso. Tanto aqueles que estão em andamento, como aqueles que tiveram conclusão, mas que exista uma avaliação de que não houve a melhor conclusão com relação aos fatos", diz Benones. Ele disse que a federalização dos quatro casos podem gerar precedente para outros similares.

Benones tambĂ©m destacou que havia um requisito que não Ă© mais obrigatório. A morosidade excessiva ou a decisão deliberada das autoridades do estado de não darem curso a investigações de determinados crimes era uma exigĂȘncia derrubada em setembro do ano passado pelo STF.

O procurador, no entanto, avaliou que a situação do Rio de Janeiro precisa ser avaliada sob outras óticas, e não apenas pelo prisma judicial. "Depois de 10 anos atuando no controle externo da atividade policial, vejo o crescimento de um discurso que aponta um antagonismo falso e perverso entre segurança pĂșblica e direitos humanos. Posso fazer vĂĄrias representações pedindo a federalização dos casos. Mas Ă© urgente desconstruir esse antagonismo, que legitima as violações de direitos humanos".

Segundo ele, Ă© plenamente possĂ­vel uma segurança pĂșblica com respeito aos direitos humanos. Benones tambĂ©m afirma que o controle externo não existe para satanizar nenhum agente do Estado e defendeu medidas como o uso das câmeras nos uniformes policiais e a criação de protocolos especĂ­ficos para a investigação de crimes cometidos pelo Estado ou por agentes policiais no exercĂ­cio de suas atividades.

"Hoje não existem esses protocolos. Seriam regulamentos exatamente para que, se não forem seguidos, aqueles que estão no papel de fiscalizar saibam o que aconteceu. As câmeras são tambĂ©m para proteção do próprio policial, inclusive contra o mau policial que estiver atuando ao seu lado", acrescentou.

agenciabrasil.ebc.com.br

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