A data Ă© sempre lembrada pelo episódio histórico do Ferro's Bar, estabelecimento na região boĂȘmia do centro de São Paulo, que foi palco de um ato de mulheres lĂ©sbicas em 1983. O local tinha virado uma referĂȘncia para essa comunidade, que viu nascer ali uma organização polĂtica das frequentadoras. Um dos sĂmbolos do movimento era a circulação do boletim Chanacomchana, que teve a venda proibida pelos proprietĂĄrios do bar. Nasceu assim a manifestação mais famosa protagonizada por lĂ©sbicas no paĂs.
?? o caso de Paula Silveira-Barbosa, de 28 anos, graduada e mestre em Jornalismo. Ela começou os estudos sobre imprensa alternativa, atĂ© descobrir fontes sobre a imprensa lĂ©sbica dos anos 1980. O tema foi levado para o mestrado, quando analisou a história das publicações e o que elas podiam trazer de legado para o jornalismo no geral. A pesquisa virou livro e foi semifinalista do PrĂȘmio Jabuti AcadĂȘmico.
Paula foi uma das fundadoras do Arquivo LĂ©sbico Brasileiro (ALB), iniciativa que começou em dezembro de 2020 por um grupo de pesquisadoras e ativistas lĂ©sbicas. O grupo apresenta como principal missão preservar registros históricos relacionados às lesbianidades do Brasil e do exterior, e democratizar o acesso aos itens de pesquisa. Nesse sentido, preservar e conhecer melhor a memória promove o reencontro com referĂȘncias importantes do passado.
"Quando a gente se envolve em movimento social, em algum tipo de ativismo, Ă© comum achar que somos as pessoas mais revolucionĂĄrias, que ninguĂ©m nunca foi tão vanguarda. Quando a gente olha para o que muitas lĂ©sbicas fizeram no passado, desconfio que, em alguns assuntos, elas estavam sendo mais revolucionĂĄrias do que a gente", diz Paula, que Ă© a atual diretora-geral da ALB. "Temos muitas referĂȘncias de mulheres lĂ©sbicas nessa luta. A memória do que elas fizeram do que produzem, do que continuam produzindo no presente, tambĂ©m nos ajuda a ter perspectiva de futuro".
O acervo digital tem variedade de artigos e pesquisas, e qualquer pessoa interessada pode acessĂĄ-lo, desde que faça cadastro prĂ©vio. O acesso Ă© gratuito, sendo vedada a reprodução. O ALB tambĂ©m promove cursos de formação, participa de debates e eventos sobre arquivos, memórias e ativismo. São comuns parcerias com entidades, acervos e instituições que defendem grupos historicamente marginalizados.
A primeira coleção publicada no site foi Imprensa LĂ©sbica, fontes que eram utilizadas pela maioria das pesquisadoras no inĂcio e que incluĂam jornal, boletim, revista, dos anos 80 atĂ© os mais recentes. - feitos por lĂ©sbicas para lĂ©sbicas. A instituição promoveu curso sobre o assunto e fez campanha de financiamento coletivo. Com o dinheiro, desenvolveu o acervo digital e adquiriu equipamento para digitalizar, catalogar e higienizar o acervo.
Em agosto de 2017, foi criado o grupo LĂ©sbicas Que Pesquisam (LQP), com o objetivo de visibilizar a presença lĂ©sbica na academia " como estudantes, pesquisadoras ou professoras. Para catalogar as pesquisadoras, foi divulgado nas redes sociais um formulĂĄrio de cadastro, que ficou disponĂvel entre agosto de 2017 e janeiro de 2018.
O LQP não tem restrições quanto aos temas e ĂĄreas de conhecimento. Portanto, não trata apenas de lesbianidades. A ideia central Ă© difundir reflexões produzidas por mulheres lĂ©sbicas. Pesquisadoras de qualquer titulação e de formação em andamento podem entrar para a lista, desde graduandas atĂ© doutoras.
O grupo desenvolve projetos como 50 LĂ©sbicas Para Lembrar e o Banco de Dados sobre o Movimento LĂ©sbico no Brasil Contemporâneo. HĂĄ tambĂ©m outras ações virtuais de divulgação de pesquisas, como o #lĂ©sbicasquepesquisamnafederal, alĂ©m do compartilhamento de textos inĂ©ditos. A ideia Ă© que as pesquisadoras possam buscar referĂȘncias entre elas mesmas e mostrar que o conhecimento cientĂfico não Ă© feito apenas por heterossexuais, brancos e elitistas.
As redes sociais do grupo trazem reflexões abertas para entender o universo lĂ©sbico contemporâneo: demandas nas mobilizações de mulheres lĂ©sbicas, organização do movimento lĂ©sbico no Brasil; se o mais correto Ă© falar em movimento ou movimentos plurais lĂ©sbicos; pontos de confluĂȘncia e dissidĂȘncias; questões que não estão sendo contempladas pelos debates.
A Rede Nacional de Ativistas e Pesquisadoras LĂ©sbicas e Bissexuais (Rede LĂ©sbi Brasil) foi lançada em agosto de 2019 no Rio Grande do Sul, em audiĂȘncia pĂșblica que tratava sobre feminicĂdio. O objetivo era agregar ativistas e pesquisadoras de todo o paĂs, unir militância e produção acadĂȘmica. O trabalho da rede tem sido o de promover, ao mesmo tempo, seminĂĄrios, cursos, debates e atos polĂticos.
A Rede LĂ©sbi Brasil coloca como missão combater "a condição compulsória de invisibilidade e apagamento das questões lĂ©sbicas e bissexuais". Existe o entendimento de que Ă© preciso politizar "experiĂȘncias, afetos e prazeres". E um dos caminhos para isso Ă© produzir polĂticas pĂșblicas especĂficas, a partir do protagonismo e dos olhares das mulheres lĂ©sbicas, para que suas demandas sejam atendidas.
A rede hoje tem mais de 60 mulheres conectadas em todas as regiões do paĂs. Uma delas Ă© Roselaine Dias, professora e mestre em educação, doutoranda em ciĂȘncias humanas. Ela pesquisou sobre a LGBTQIfobia a partir da perspectiva de jovens de Campo Grande, na capital de Mato Grosso do Sul. Foram entrevistas com centenas de estudantes da maior escola de ensino mĂ©dio do estado. O trabalho pôde ampliar a compreensão sobre os diferentes tipos de violĂȘncia de sexo e gĂȘnero presentes no ambiente escolar.
Nessa junção entre polĂtica e produção intelectual, abrem-se caminhos para desenvolver o orgulho, o afeto e a luta.
"A gente consegue na inter-relação, intersecção de rede, articulação e diĂĄlogo, fomentar vĂĄrios espaços e campos de ação. Trazemos discussões sobre vivĂȘncia, militância e dores das mulheres lĂ©sbicas. Isso fica claro nos simpósios e atos polĂticos de que participamos. Um bom exemplo Ă© o Ocupa Sapatão, no Rio de Grande do Sul, em que articulamos ativistas e pesquisadoras para pensar nossas lutas e demandas. E dizemos ali para toda a cidade que temos o mesmo direito de estar ali, nas ruas brigando pelos nossos direitos. Nós articulamos polĂtica, prazer, desejo, cultura e formas de vivĂȘncia no espaço pĂșblico", diz Roselaine.