"?? resistĂȘncia na luta dos direitos do negro, da luta que todos nós buscamos, da igualdade que não temos. Os jovens tĂȘm que aprender a caminhar, ter coragem", disse à AgĂȘncia Brasil.
Para a avó, Ă© importante que as duas crianças, desde cedo, frequentem ambientes de reivindicação coletiva contra o racismo e pelo bem viver."Para que elas cresçam sabendo que a nossa existĂȘncia Ă© importante para o mundo mais justo, igualitĂĄrio, que nós, mulheres, somos o Ăștero desse mundo e precisamos ser respeitadas", explicou.
A marcha organizada pelo Fórum Estadual de Mulheres Negras reuniu milhares de pessoas e fecha a semana de mobilização pelo Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, celebrado em 25 de julho, alĂ©m do Julho das Pretas, agenda coletiva de manifestações e celebrações ao longo do mĂȘs.
Uma das organizadoras, Clatia Vieira assinala que a caminhada representa mulheres negras de favelas, terreiros, comunidades e periferias, de 52 dos 92 municĂpios do Rio de Janeiro.
"Estamos marchando tambĂ©m por moradia, por uma educação pensada por nós e por uma vida sem violĂȘncia para as mulheres negra", lista a organizadora.
"O racismo faz mal para toda a sociedade, o racismo mata, o racismo adoece. Quando a gente respeita as mulheres negras, a gente estĂĄ respeitando todo uma sociedade", declara.
EstatĂsticas provam que mulheres negras enfrentam desafios mais pesados que outros segmentos da sociedade brasileira.
Na economia são principais vĂtimas do desemprego. Em 2023, as mulheres negras de 18 a 29 anos tiveram uma taxa de desemprego trĂȘs vezes maior que a dos homens brancos no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e EstatĂstica (IBGE) analisados pela organização Ação Educativa. AlĂ©m disso, a juventude feminina negra tem uma renda 47% menor que a da mĂ©dia nacional.
No âmbito da segurança, o AnuĂĄrio Brasileiro de Segurança PĂșblica, divulgado no Ășltimo dia 18, revela que 63,6% das vĂtimas de feminicĂdio foram mulheres negras em 2023. No ano anterior eram 61,1%.
Em relação à violĂȘncia sexual, entre 2012 e 2023, tambĂ©m de acordo com o AnuĂĄrio, a proporção de mulheres negras vĂtimas saltou de 56,4% para 63,2%.
Clatia Vieira conta que o ato Ă© tambĂ©m um protesto por duas pautas especĂficas. Uma delas são decisões da Justiça que absolvem agentes de segurança envolvidos na morte de negros.
A organizadora cita o exemplo do jovem João Pedro, de 14 anos, morto com um tiro de fuzil pelas costas, dentro da casa de parentes, em 18 de maio de 2020, durante operação policial na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. A Justiça, após analisar as provas e depoimentos, entendeu que os agentes agiram em legĂtima defesa.
Outro tema Ă© o Projeto de Lei 1904/24, que tramita na Câmara dos Deputados, e prevĂȘ que o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação, em qualquer situação, passarĂĄ a ser considerado homicĂdio, inclusive no caso de gravidez resultante de estupro.
A diretora executiva da organização da sociedade civil Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, classifica a marcha como "vĂĄrios gritos, vĂĄrias reivindicações e afirmações".
"Os gritos denunciam a injustiça que afeta as mulheres negras e suas famĂlias", disse.
Ela ressalta ainda a importância de levar vozes de mulheres negras para as ruas.
"Somos o principal segmento populacional do Brasil, somos a maioria no Brasil e negligenciadas com violação de direitos humanos a todo tempo".
O Brasil tem 60,6 milhões de mulheres negras, sendo 11,30 milhões de pretas e 49,3 milhões de pardas, o que corresponde a 28,3% da população, de acordo com o Censo de 2022 (IBGE).
"A gente quer os meninos negros vivos, a gente quer mulheres negras vivas, a gente quer um Brasil sem racismo", manifestou Werneck.
Por toda a marcha viam-se faixas e cartazes que identificam grupos e reivindicações. Um deles era de combate ao racismo obstĂ©trico e mortalidade materna negra. "São as mulheres negras as que mais morrem durante a gestação, parto e puerpĂ©rio [perĂodo de seis a oito semanas após o parto]", aponta Gabriella Santoro, presidente da Associação de Doulas do Estado do Rio de Janeiro.
Dados do MinistĂ©rio da SaĂșde mostram que, em 2022, o Ăndice de mortes maternas de negras era de 100,38 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos. No caso de pardas, era 50,36. Entre as brancas, a taxa baixava para 46,56.
Gabriella Santoro explica que parte do racismo durante o parto Ă© baseado em ideias preconceituosas.
"Mulheres negras recebem menos alĂvio para dor durante o parto porque hĂĄ uma ideia preconcebida errada e preconceituosa de que negras aguentam mais a dor que brancas, então, por isso, a elas Ă© negada a analgesia durante o parto", exemplifica.
Representantes de comunidades quilombolas circulavam entre as manifestantes. Uma delas era Adriana Silva, do Movimento Nacional Quilombo Novembro Negro. Para ela, ainda mais no cenĂĄrio em que o IBGE, pela primeira vez, traz dados detalhados sobre a população quilombola, a presença na marcha era tambĂ©m questão de visibilidade.
"A importância de os movimentos estarem participando Ă© ter visibilidade. Tem toda uma história e nós somos resistentes. ?? importante que a sociedade venha ver e reconhecer que Ă© necessĂĄrio fazer uma igualdade entre o povo negro e não negro", disse.
A organizadora da Marcha das Mulheres Negras, Clatia Vieira, considera que a 10ÂȘ edição da caminhada Ă© "um apanhado" das outras nove edições. Ela espera que, em dez anos, haja avanços na questão racial no paĂs, de forma que o ato possa acontecer com uma atmosfera de menos contestação e mais celebração.
"Até aqui a gente tem marchado para contestar e denunciar. A gente espera que daqui a dez anos seja o encontro de alegria, que a gente possa olhar para o Poder Legislativo e ver mais mulheres. Daqui a dez anos a gente quer uma mulher preta presidente, daqui a 10 anos a gente quer ver as mulheres negras em pé de equidade com essa branquitude", desejou.
O Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em 25 de julho, foi criado pela Organização das Nações Unida (ONU), durante o 1Âș Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, em Santo Domingo, na RepĂșblica Dominicana, em 1992. No Brasil, a data tambĂ©m Ă© uma homenagem à Tereza de Benguela, conhecida como Rainha Tereza, que viveu no sĂ©culo 18, no Vale do GuaporĂ©, em Mato Grosso, e liderou o Quilombo de QuariterĂȘ.